Paixão pela leitura

26/10/2018

Em Uma História da Leitura, o escritor argentino Alberto Manguel conta como, aos quatro anos, descobriu que podia ler.Até então, ele sabia que as “formas pretas e rígidas” junto às figuras do livro infantil representavam um código, que revelava o nome de cada figura – menino – e o que acontecia com elas: o menino corre. Mas o código ainda lhe era estranho; sua babá lia para ele. Até que, um dia, ele viu um cartaz na estrada com algumas daquelas formas que conhecia de seu livro. De repente, ele sabia.

“Escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante”, recorda.

O prazer sentido por Manguel ao decifrar o código da escrita é familiar à maioria das pessoas alfabetizadas. Não seria, porém, o único nem seu maior prazer relacionado às letras. Como ocorre com todo bom leitor, a história de leitura do argentino estava só começando. Porque, entre ser capaz de compreender o bê-a-bá e de ler um Dom Quixote, por exemplo, há um longo percurso. E, nesse percurso, a escola tem muito a contribuir.

“Há uma diferença entre alfabetização e letramento”, diz Renata Weffort, coordenadora assistente da Educação Infantil e do 1º ano do Vital Brazil. “Em linhas gerais, alfabetização é a aquisição do código alfabético; letramento é o desenvolvimento das competências, do hábito e do prazer da leitura”. Não é preciso, todavia, esperar que a criança aprenda a ler para fazê-la gostar de ler. Na primeira etapa da vida escolar, os dois eixos podem e devem ser trabalhados simultaneamente.

É o que se vê em rodas de leitura e de contação de histórias promovidas do Maternal ao 1º ano. São atividades diferentes com objetivos em comum.

As primeiras envolvem um contato livre dos alunos com os livros: em sala de aula ou na biblioteca, a professora dispõe no tapete alguns títulos para que cada criança pegue o que mais lhe interessar. Elas ainda não leem, mas já exercitam procedimentos de leitura, como o manuseio das páginas, a escolha de títulos e a troca de impressões com colegas.

Além disso, mesmo sem ler, a criança já é capaz de “entrar no mundo do livro”, seja pelas figuras, seja pelo conhecimento prévio do enredo. Já na contação de histórias, os alunos ouvem a professora. Também aqui se dá o encantamento – tanto maior quanto mais expressiva for a leitura da professora, com uso de vozes e entonações distintas, expressões dramáticas e objetos de cena.

Ao mesmo tempo, ambas as atividades ajudam a apresentar à classe o código alfabético. “Nessa fase, trabalhamos com as chamadas palavras estáveis e de referência”, diz Renata, referindo-se a palavras com as quais as crianças têm contato frequente, como, por exemplo, seu nome próprio ou o nome dos personagens das histórias infantis: galinha, rato, macaco. “Os alunos veem essas palavras escritas em livros, cartelas, etiquetas, na lousa, e vão associando os sons aos sinais”.

Para além do enredo
“É como uma cortina que se abre. A leitura deixa de ser código por código, sílaba por sílaba, e eles passam a querer ler tudo”, diz Káthia Kobal, coordenadora da Educação Infantil e do Fundamental I, sobre a alfabetização. Realmente, a partir daí, um dos papéis da escola é apresentar aos alunos um pouco de tudo. Ao longo do Ensino Fundamental, os alunos do Vital leem contos de fada, lendas, fábulas, poemas, quadrinhos, cordéis, contos, romances, peças de teatro, além de cartas, receitas, reportagens e outros gêneros não literários.

Embora essas leituras sejam avaliadas e rendam notas ao aluno (por meio de atividades diversas, como questionários e dramatizações), o objetivo principal, diz Káthia, é a valorização da leitura em si, a criação de uma comunidade de leitores. “O livro deve ser fonte de prazer intelectual, não obrigação”. É por isso que as rodas de contação e visitas à biblioteca são tão frequentes na Educação Infantil; ou que, do Pré II ao 5o ano, toda sala de aula tenha acervo próprio de livros e gibis, para consulta livre dos alunos; ou que, toda semana, algumas horas de aula sejam sistematicamente dedicadas para que os alunos selecionem livros para ler em casa, socializem suas experiências e recomendem títulos uns aos outros.

É por isso, também, que não se fala mais em “livros paradidáticos”, como explica Débora Evans, professora de Língua Portuguesa de 8º e 9º anos: “O termo ‘paradidático’ pressupõe um apoio ao conteúdo didático, e a função da literatura não é essa”.

Até porque, como nota Débora, a partir de certo momento, a qualidade da leitura muda, e a forma como um texto é escrito passa a ser apreciada tanto quanto seu conteúdo. “Antes, os alunos ainda estão muito presos à história – o que vai acontecer no final, qual será o mistério”, diz a professora. “Mas então eles começam a perceber as entrelinhas, a entender ironias e metáforas, a questionar a intenção do autor. É isso que faz os olhos de um leitor brilhar”.

Professora de 6º e 7º anos, Mariane Rodrigues concorda com a colega. “O projeto do Vital vai em direção à ampliação do olhar crítico”, diz. Assim, os debates em sala de aula sobre os livros lidos cada vez mais ultrapassam o enredo, demandando dos alunos a interpretação de ideias e valores contidos nas obras, refleção sobre eles e sua relação com o mundo real.

Chegando ao Ensino Médio, a apreciação da literatura como arte – conteúdo e forma, enredo e linguagem – se consolida. Assim como toda arte, um livro reflete o contexto sócio-histórico em que foi produzido, daí por que as aulas de Literatura do Médio passam a acompanhar as aulas de História, em termos de época estudada.

“Começamos com cantigas do trovadorismo do século XIV e vamos até os anos 2000”, diz o professor Carlos Daniel Vieira, que, para enfatizar o vínculo entre o texto e seu tempo, utiliza pinturas contemporâneas às obras estudadas. “A mesma época que produz o modernismo em Fernando Pessoa produz um Salvador Dalí”. Perceber essa relação, diz Carlos, é fundamental para uma leitura mais profunda, compreensiva e, consequentemente, mais prazerosa. “Só amamos o que compreendemos”.