O olhar que pensa, sente e faz
23/06/2019
Como o projeto de Arte do Vital avança da exploração lúdica da materialidade para a reflexão e a produção críticas dos alunos.
Os alunos de Juliana Carnasciali já devem estar acostumados a ser surpreendidos. Nas aulas da professora de Arte da Educação Infantil e do 1º ano do Fundamental, o contato com algum objeto ou substância novos leva à curiosidade; a curiosidade, à exploração; a exploração, ao encanto. E a descobertas.
Uma mala de couro com uma etiqueta que diz “A Mala das Artes” é apresentada à turma do Pré II. Após minutos de animada especulação (o que tem aqui dentro? o que vocês acham que é arte?), Juliana abre o zíper e revela o conteúdo secreto: uma paleta de pintura com tintas variadas, para os alunos verem e tocarem; um chocalho para explorarem o som; um brinquedo de apertar; livros, blocos de desenho, ilustrações, fotografias.
Em outra aula, a turma do período integral recebe sacos de chá de diferentes sabores, copos com água, papéis e pincéis. Querem provar um pouco de chá? Ali podem. Querem usar os chás como tintas, misturando o vermelho de morangos silvestres com o ocre do cravo e canela? Podem também. Sob a supervisão de Juliana, o contato das crianças com o mundo da arte é concreto, físico, tátil.
Nos dois casos, os alunos estão apenas começando a entender o conceito de Arte, descobrindo o que é possível fazer quando se adota um olhar criativo diante do mundo. Se ficarem no Vital até o fim do Ensino Médio, terão percorrido uma trilha que os levará da livre exploração ao aprimoramento técnico, à reflexão e à produção críticas. Do que pode ser feito às diferentes formas de fazer, ao que se pode comunicar com o que é feito.
A descoberta da voz artística
“Nosso projeto se baseia em ampliar os modos de olhar”, diz Juliana. Olhar, entenda-se, tem um significado próprio para a equipe de Arte do Colégio, indicando tanto percepção quanto ação: um olhar que pensa, sente e faz. A começar pelas primeiras brincadeiras na sala de Artes do Vitalzinho.
“Inicialmente, há o foco na exploração lúdica da materialidade”, diz a professora. Ao se cumprirem os objetivos de aprendizagem da Educação Infantil e dos anos iniciais do Fundamental, os alunos vão brincar com diferentes tipos de tinta, testar diferentes riscadores para produzir marcas em diferentes superfícies, explorar materiais manipuláveis (como argila e massa de modelar) e, no geral, descobrir possibilidades contidas em desenhos, pinturas, colagens, dobraduras e esculturas. No processo, adquirirão um repertório de sensações e termos que lhes permitirá pensar e agir sobre o mundo. Atributos como liso/áspero, claro/escuro, grande/pequeno e conceitos como linha, forma e simetria comporão um vocabulário que, mais à frente, poderão acessar com mais intencionalidade.
À medida que os alunos avancem nos conhecimentos estéticos e culturais, avançará também o conhecimento sobre si mesmos. Não por acaso, do Pré II em diante (quando a criança começa a perceber a si e os colegas como indivíduos com personalidades distintas), são frequentes nas aulas de Arte exercícios variados de retratos e autorretratos.
Ao se distinguirem uns dos outros, os alunos notarão também algo semelhante em suas produções artísticas: cada um terá desenvolvido um estilo, uma voz própria. “Com o tempo, eles passam a reconhecer os traçados de cada um; se pego os cadernos de desenhos, não preciso ler os nomes, eles já dizem: ‘Esse é do Pedro! Esse é da Manuela!’”, diz a professora Sílvia Mendes, que dá aulas do 2º ao 5º ano do Fundamental.
Ver os alunos descobrirem sua “assinatura” levou a professora a refletir sobre o valor dos registros e a inspirou a instituir, entre os alunos, a adoção de portfólios pessoais. Com o título “Bagagem Artística: o que há de arte em mim”, cada portfólio reúne as obras produzidas nas aulas de Arte ao longo do ano e, como explica Sílvia, “evidencia para o aluno a continuidade e a evolução do seu trabalho”. Uma evolução, ela ressalta, que é medida tomando-se cada aluno como sua própria régua. Ela não espera que os trabalhos caminhem em direção a um arbitrário ideal de qualidade artística, mas espera, sim, que o aluno se torne capaz de fazer mais do que fazia antes, com cada vez mais consciência e domínio sobre o processo de criação.
A importância da técnica
“O que mais nos interessa na produção artística dos alunos não é o resultado, mas o processo”, diz Maristela Pinheiro, que dá aulas do 6º ano em diante. Pode-se dizer que Maristela vai mais a fundo nos aspectos técnicos do fazer artístico – e, para isso, recorre de maneira sistemática à História da Arte. Até porque é para os grandes artistas que os alunos olham para aprender.
“Assim como não há produção de texto sem leitura, não há produção artística sem treinar o olhar”, diz a professora, que promove na turma a análise e a reflexão. Como o artista criou esse efeito? Que recursos usou?
Exemplos disso são atividades como uma do 6º ano, em que os alunos reproduzem em folha de papel algum detalhe de uma obra clássica – um exercício sobre noções de escala, proporcionalidade e composição –, ou do 7º ano, atividade inspirada em técnica da artista nipo-brasileira Tomie Ohtake, que primeiro fazia colagens para depois produzir pinturas das colagens. De acordo com Maristela, trabalhos como esses mostram aos alunos a importância da técnica; que, embora não haja um único jeito certo de fazer arte, arte não se faz de qualquer jeito. “Todo artista tem seu processo de criação, suas fórmulas”, diz ela, que afirma que os alunos, longe de se desmotivarem com aulas de perspectiva ou desenho da figura humana, “querem técnica, eles gostam muito. A técnica é a base para a criação individual”.
A partir do 9º ano, o projeto pedagógico engata uma última marcha até o fim do Ensino Médio. O foco se torna a Arte como crítica e intervenção social. “Os alunos já estão mais maduros para se relacionarem com a arte contemporânea”, diz Maristela.
Segundo a professora, os alunos passam a estudar “como obras refletem e questionam contextos sociais específicos” – o 9º ano utiliza os três volumes da coleção Arte e Sociedade no Brasil (1930-1956; 1957-1975; 1976-2003) – e a produzir, eles próprios, obras mais críticas. Incluindo instalações fora do Estúdio de Arte e em lugares além dos murais de corredor, como escadas, janelas, bebedouros, etc. É quando o fazer artístico se consolida não mais como uma brincadeira exploratória ou um exercício técnico, mas como meio de expressão de ideias e inquietações próprias da nova geração.