Entre o certo e o errado

26/10/2018

Há quem olhe para crianças jogando bolas de gude e veja uma simples brincadeira infantil. Jean Piaget, psicólogo e epistemólogo suíço que revolucionou a Pedagogia no século XX, via uma metáfora da vida em sociedade.

Como observou Piaget, uma criança pequena não segue regras ao brincar. O prazer de dar petelecos nas bolinhas é mais importante do que participar da atividade coletiva. Então a criança cresce e quer entrar no jogo, que ela sabe ser ordenado por regras. Ela não questiona as regras – as regras são o que são, determinadas por uma autoridade suprema – e, na maior parte do tempo, obedece a elas. De vez em quando, porém, ela ignora o regulamento, inventando variações no jogo por interesse próprio (“não valeu, vou jogar de novo”, “vou só limpar o caminho”). Até que a criança cresce mais um pouco e percebe que pode, em conjunto, definir as regras do jogo. Estando o grupo de acordo, o que todos combinarem passa a valer. Ir contra as regras, agora, será mais custoso, porque cada regra é algo que a criança conscientemente considera correto. Burlar o jogo irá de encontro às suas convicções pessoais, aos seus próprios valores.

A observação de Piaget acerca da dinâmica do jogo infantil influenciou seu entendimento sobre a formação moral dos indivíduos – e o trabalho de educadores nas primeiras fases da vida escolar. É quando, diria Piaget, a criança sai do estado de anomia (não reconhecimento de normas sociais) para o de heteronomia (obediência a normas por reconhecimento de autoridade superior), para, mais tarde, chegar à autonomia (obediência a normas por reconhecimento de seu valor intrínseco).

Se queremos que uma criança se torne uma pessoa honesta, justa, generosa e respeitosa, portanto, devemos acompanhá-la no percurso até a autonomia, quando ela agirá corretamente não por dever, mas por livre consciência.

“O urso sou eu”
A chave está na reflexão crítica. Uma criança só reconhece o valor de regras morais – não mentir, não ofender, não pegar nada de outros sem permissão – se pensar sobre elas e decidir, por conta própria, que fazem sentido. E, embora, até certa idade, essa criança não seja capaz, intelectual e emocionalmente, de ser autônoma de fato (ela ainda precisa da autoridade clara e direta de um adulto), é possível propiciar a ela discussões sobre regras de convívio social desde cedo. Uma ferramenta que o educador dispõe para isso é a literatura.

“Tradicionalmente, a escola trabalha com fábulas que trazem uma ‘moral da história’”, diz Renata Weffort, coordenadora assistente da Educação Infantil e do 1º ano do Vital. “Alguns livros modernos são mais interessantes, porque não oferecem uma moral tão clara, deixam aberta a discussão do que é certo e errado”. Em Camilão, o Comilão, por exemplo, a escritora Ana Maria Machado conta a história de um porco que, em vez de trabalhar por alimento, pede comida aos outros bichos da fazenda. Seria uma postura reprovável? E se fosse revelado que Camilão estava preparando um banquete-surpresa para todos? No debate que se segue, os alunos refletem sobre o próprio comportamento. “O faz de conta é veículo para elaborarem questões da vida real”, diz Renata, citando o caso de uma aluna que, na leitura de outro livro, O Urso Rabugento, chegou a uma notável conclusão: “Professora, o urso sou eu”.

Tão frequentes quanto as rodas de leitura no cotidiano escolar, conflitos entre colegas são também oportunidades de reflexão sobre o que se deve ou não fazer na vida social. Para isso, contudo, uma intervenção qualificada do educador se faz necessária. Foi com esse objetivo que, em julho e agosto, a equipe gestora, o corpo docente e estagiárias da Educação Infantil, do Fundamental I e do Inglês do Vital participaram de encontros de formação com a psicóloga Flávia Vivaldi, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), ligado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Um trabalho que será intensificado em 2018, com encontros bimestrais.

Flávia mostrou como, na mediação de conflitos, é possível evitar o tom condenatório em prol de uma comunicação mais construtiva. Como, por exemplo, em vez de juízos definitivos sobre a personalidade da criança (“você é muito grosseiro”), é preferível a descrição objetiva do problema (“vejo que está aborrecido, mas diga o que o incomoda sem bater no colega”). Isso dá à criança, segundo Flávia, a possibilidade de tomar consciência sem se sentir “atacada”. Outro conselho da psicóloga é o de empregar a escuta ativa dos alunos em conflito, entender a posição de cada um e parafrasear suas queixas para, em linguagem neutra, ajudá-los a ver o problema que ambos têm a resolver (“se entendi bem o que vocês disseram…”).

Em outros momentos, conflitos podem gerar lições e soluções para toda a classe. “Em uma turma de 3º ano, algumas situações problemáticas inspiraram uma discussão em sala de aula sobre ‘magoar sem intenção’”, diz Cybele Zancarli, coordenadora assistente do Fundamental I. “O interessante foi que adotamos a sugestão de uma aluna, de montar um gaveteiro com três gavetas para bilhetes: ‘Me faz bem!’, ‘Me faz mal!’ e ‘Nossas sugestões!’”.

Já no 5º ano, algumas ocorrências de desrespeito via WhatsApp motivaram uma discussão em assembleia geral na classe. Nos dois casos, o trabalho de educação moral envolveu tanto o uso da autoridade como, o que é mais importante, o exercício de consciência crítica.

Isso sem falar nas diversas instâncias em que o Colégio atua não para coibir maus comportamentos, mas para promover virtudes como solidariedade e respeito entre alunos. Como diz a coordenadora Káthia Kobal, “uma personalidade ética conduz à autoestima e a uma vida mais feliz. É quando agir certo e fazer o bem já nos basta, porque nos faz bem”.