O noticiário na sala de aula
26/10/2018
Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu o termo “pós-verdade” como a “palavra do ano”, título concedido a vocábulos que refletem o espírito de seu tempo. Meses depois, o presidente dos Estados Unidos inaugurava o hábito de acusar toda notícia negativa à sua administração como falsa, popularizando um termo – fake news – de impacto cultural ainda maior.
Num contexto em que fatos se tornam menos influentes para a opinião pública do que apelos emocionais; ou, pior, em que a própria definição de “fato” é posta em xeque, saber o que ocorre no mundo e tomar posições com base em uma visão objetiva e crítica da realidade revela-se tarefa nada simples. Tarefa que alunos do Ensino Médio, frequentemente cobrados a responder ou dissertar sobre questões da atualidade, precisam estar preparados para cumprir. Como os professores do Vital podem ajudá-los nisso?
Para o professor de Geografia e Sociologia Fernando Ribeiro, a primeira coisa a fazer é desconstruir a ideia que se costuma ter sobre o tratamento dado às chamadas “atualidades” no currículo escolar. “Fala-se em ‘atualidades’ como se a gente abrisse um jornal e dissesse: vamos falar sobre isso hoje”, diz Fernando. “Mas não é o jornal que vai fundamentar a aula de Geografia; é a aula de Geografia que vai fundamentar a leitura da realidade”. Segundo o professor, o compromisso da escola é com o programa das diversas disciplinas que oferecem conceitos essenciais para o entendimento do mundo. Não se pode discutir a saída do Reino Unido da União Europeia, ele argumenta, sem compreender, antes, fundamentos econômicos, políticos e demográficos.
Muitas vezes, acredita Fernando, é o desconhecimento de conceitos básicos o que ajuda a promover notícias falsas. Em abril, lembra o professor, um boato de que este seria o inverno mais rigoroso dos últimos 100 anos ganhou força, mesmo sem qualquer declaração oficial de órgãos de meteorologia. O clima ligeiramente mais frio do que no ano anterior foi o bastante para tornar crível a previsão extrema – exceto para quem, diz Fernando, já havia aprendido na escola sobre o fenômeno La Niña.
O professor não defende, é claro, que a escola seja desligada da realidade contemporânea. Especialmente no seu caso. “Na Geografia, você se recicla o tempo todo. Eu, por exemplo, já cheguei a dar aulas sobre a China dizendo que o país era a oitava economia mundial”, diz ele (hoje, é a segunda). No entanto, insiste, é com cuidado que o professor deve trazer os acontecimentos correntes para a sala de aula. “Se um aluno me pergunta algo sobre Trump, preciso abordar vários conceitos para chegar ao que são os Estados Unidos na geopolítica atual”.
Para Tiago Gomes, que dá aulas de Produção de Texto do 9º ano do Fundamental à 3ª série do Médio, o próprio professor precisa de tempo para tratar de assuntos em pauta no noticiário. “Ao nos depararmos com temas novos, temos todo um processo de preparação que envolve pesquisa e seleção de textos e autores adequados para usar em sala de aula”, diz Tiago. Como exemplo, ele cita o desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em maio deste ano. “Eu preciso pesquisar sobre déficit habitacional, sobre a história das imigrações e da formação urbana de São Paulo, antes de propor isso como tema de redação”.
Tempo para reflexão
Pesquisar, selecionar fontes, refletir, tudo isso leva tempo. E tempo, segundo o professor de História Márcio Raimundo dos Anjos, é algo em falta. Para Márcio – mais conhecido como Cazé desde os anos 1990 pela semelhança com um ex-apresentador da MTV –, o mundo atual promove um ambiente de urgência, em que as informações circulam frenéticas, sendo lidas e compartilhadas sem critério. “Para nos vacinarmos contra informações falsas, é preciso um timing diferente. A escola deve promover esse timing, produzir uma cultura de reflexão e discernimento”, diz o professor.
Discernimento e também visão crítica, outro atributo escasso no debate público. Trata-se não apenas da capacidade de distinguir o que é ou não fato, mas também de avaliar as diversas interpretações possíveis dos fatos – que não se encaixam em categorias de falso ou verdadeiro – de forma objetiva e distanciada. Objetividade que, segundo Cazé, não exclui, pelo contrário, alimenta a criticidade. “Existem argumentos bons em toda estrutura de pensamento, mas nenhuma estrutura é suficiente para dar conta da totalidade que é o mundo. E é porque há insuficiências que se desenvolvem pensamentos diferentes. O que um discurso não consegue atender, o outro atende”. Para Cazé, “a objetividade está no entendimento das proposições; a criticidade está na percepção dos limites de cada uma”.
Assim, segundo o professor, seu papel em sala de aula não é manifestar suas inclinações pessoais, mas apresentar aos alunos as diversas possibilidades de entendimento de mundo, fazendo jus a elas. “Quando falo do Liberalismo, sou liberal. Mostro a lógica que estrutura o pensamento liberal e que se reflete na proposição de um Estado mínimo”, diz ele. “E, quando eu apresentar um discurso mais conservador, mostrarei a lógica desse discurso”.
Ao solicitar redações dos alunos, Tiago Gomes também evita se posicionar politicamente. “Preciso que o aluno exercite a argumentação a partir de seu olhar de mundo, e me preocupa que ele diga aquilo que ache que eu quero ouvir”, diz o professor. É pela mesma razão que o professor de Filosofia José Carlos Demarchi afirma: “Se eu pedir a opinião do aluno, eu não vou discordar dele e pronto; eu quero que ele fundamente sua opinião, não fique no ‘eu acho’”.
É esse exercício de construção de argumentos – baseados em conhecimento, formulados com método e racionalidade – a melhor maneira que a escola tem de ajudar os alunos a se informar e a se engajar em debates sobre a realidade. E a tomar posição, sem que isso anule sua capacidade de julgamento. Como diz o professor Fernando: “Temos 16 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. Mas posso falar que o Brasil só tem 8% de sua população abaixo da linha da pobreza. Os dois números são fatos; a leitura vai depender de cada um”.