Lições do passado

03/12/2018

Cerca de dez anos após a Guerra do Paraguai (1864–1870), dois grandes pintores, um brasileiro e um uruguaio, produziram duas obras-primas sobre o conflito. O “Combate Naval do Riachuelo” (1882), de Victor Meirelles, é a imagem heroica de uma esquadra brasileira destruindo embarcações paraguaias, uma das quais naufraga, em primeiro plano, sua tripulação indefesa. O segundo quadro, do uruguaio Juan Manuel Blanes, traz cena mais modesta, mas não menos expressiva: uma mulher solitária, de cabeça baixa, chora a multidão de homens mortos na praia à sua volta. O nome da obra: “La Paraguaya” (1879).

As duas pinturas serviram de mote para uma questão da Fuvest em 2011, como lembra o professor de História Thiago Campos, que dá aulas para o 9º ano e para a 2ª e 3ª séries do Ensino Médio do Vital. “Lado a lado, elas contam duas histórias diferentes sobre um mesmo fato”, diz Thiago, sublinhando uma das lições mais importantes que todo estudante de História deve aprender: que a realidade é composta de narrativas, nenhuma das quais, isoladamente, dá conta do que de fato aconteceu; que alguns personagens podem encarnar heroísmo ou infâmia, e certos episódios assumir ares nobres ou indignos, a depender de quem os narra. Que estudar História, portanto, é entrar em contato com as principais interpretações da realidade, mas com senso crítico para perceber os limites de cada uma.

Até serem capazes disso, contudo, os alunos do professor Thiago tiveram de aprender coisas bem mais básicas em sua vida escolar, a começar pelos conceitos de passagem do tempo – antes, agora, depois – e de contexto histórico. Eles aprenderam isso seguindo a trajetória do primeiro personagem histórico ao qual toda criança é apresentada: ela própria.

Eu, sujeito histórico
Nas salas de aula da Educação Infantil do Vital Brazil não faltam espelhos. A todo momento, os alunos se veem interagindo com os colegas, e diversas circunstâncias os levam a considerar: “este(a) sou eu”. O uso de crachás é frequente no Maternal, e seus nomes estão escritos por toda parte: na lousa, nas mochilas, nos materiais. “Eles precisam se reconhecer pelo nome; muitos ainda se referem a si próprios na terceira pessoa”, diz Carina Costa, professora do Maternal.

Os alunos também se veem nas muitas fotos que registram diferentes momentos da rotina escolar da turma: a roda de conversa, a hora do lanche, o intervalo. Rotina, como a identidade, é outra questão ressaltada nessa fase: no início de todo dia, a ordem das atividades está escrita na lousa e é anunciada pela professora. Calendários também têm lugar de destaque nas salas de aula.

Por trás disso tudo – espelhos, fotos, nomes, calendários – está a ideia de que a compreensão histórica só é introjetada na criança quando ela se percebe vivendo sua história particular (o que EU estou fazendo agora, o que farei depois, e depois…), em um tempo e espaço compartilhados por outras pessoas. A partir daí, essa história vai se ampliando em escopo ao longo das séries escolares.

No Pré II, por exemplo, cada criança ganha um boneco de pano confeccionado com as dimensões e características aproximadas (cor de olhos, cabelo, roupas, etc.) que tinha ao nascer. Ela é levada a se questionar sobre sua origem: como eu era? Eu era pequena assim. Quem me vestiu? Minha mãe me vestiu. Nas séries seguintes, a investigação se alarga – os alunos produzem linhas do tempo de sua vida, com fotos de seu nascimento até o presente – e se aprofunda nas raízes familiares – eles pesquisam como seus pais eram na infância, do que gostavam de brincar e de comer, bem como de onde vieram seus avós, bisavós, tataravós…

Por volta do 3º ano do Fundamental, a história da família já não dá conta da História. Em uma atividade interdisciplinar, os alunos desenham mapas do trajeto diário entre sua casa e o Colégio; no processo, estudam o passado do bairro e sua importância para a cidade (o Instituto Butantan, a USP). O sujeito histórico vai deixando de ser apenas o “eu” de cada criança e se multiplicando.

Quando, no 4º e 5º anos, os alunos estudam a colonização do País, suas investigações anteriores tomam outra dimensão. Assim como seus antepassados, milhões de outras famílias de imigrantes vieram ao Brasil. Assim como eles e seus colegas de turma, índios, portugueses e africanos faziam parte de um mesmo tempo histórico, sobre o qual cada grupo trazia perspectivas distintas. “Aí entram os questionamentos: e se eu fosse escravo hoje? O que pensavam os índios? Por que os bandeirantes são considerados heróis?”, diz Angélica Tironi, professora do 4º ano, notando que atividades de dramatização ajudam os alunos a se pôr no lugar de diferentes personagens históricos.

História é versão
Se até aqui o conteúdo é relativamente próximo da realidade dos alunos, no Fundamental II “a ‘história de mim’ dá um salto para o mundo”, como coloca a professora Cláudia Cristina Silva. Do 6º ano em diante, eles estudam a história da humanidade – do surgimento do Homo sapiens até a diversidade de organizações políticas, sistemas econômicos e culturas surgidos desde então.

“Eu uso uma linguagem que eles entendam: ‘Gente, quando eu falar em Economia, estou falando em dinheiro; quando falar em Política, estou falando em governo…’”, diz a professora. Simples é a linguagem, mas não os questionamentos que ela promove – o que é ser civilizado? Onde começou a desigualdade? –, para fortalecer o olhar crítico que já se desenhava no Fundamental I. “História não é verdade, é versão – sempre depende da fonte”, diz Cláudia, acrescentando, porém, que “não se questionam fatos; pode haver opiniões diferentes sobre a História, mas tem que ter base nos fatos”.

Até o 9º ano, Cláudia apresenta a história do Brasil e a do mundo – que estão sempre interligadas, “não estamos dormindo enquanto na Europa acontecem revoluções” –, por meio de textos, músicas, poemas, discursos, reportagens, filmes, materiais diversos, sempre chamando a atenção para quem os produziu e em qual contexto. Quando chegam ao Ensino Médio, para revisar de maneira ainda mais aprofundada todo esse conteúdo, os alunos já estão prontos para compreender conceitualmente as principais linhas de interpretação da realidade, conhecer seus contrapontos, perceber suas limitações e formar sua própria opinião sobre a História.